Acho
que hoje vai dar, o trabalho no escritório está adiantado, a petição inicial
vai ser entregue amanhã. __
pensou.
Faltando
algumas horas para o final de seu expediente ele saiu, disse ao estagiário que
não voltaria mais, que esperasse por Armando, seu sócio, pois esse poderia ter
algum pedido para fazer ainda.
No
metrô suas pernas tremeram.
Pensando melhor, talvez o ideal seja eu ir
direto para casa, a discussão com a Nancy foi péssima, está ficando cada vez
pior a situação, não quero mais problemas.
Embora
a voz da razão soprasse em seu ouvido o caminho a ser tomado, ele não se mexeu
do lugar, continuou ali esperando o metrô.
Nancy
sempre fora calma, doce, nunca exigiu muito dele, sabia que não era amada, mas
achava que poderia lidar com isso, na verdade ela não se importava com esse
fato, para ela isso era um mero detalhe.
Maurício, por sua vez, procurou
proporcionar-lhe uma vida confortável, quando ela quis parar de trabalhar para
cuidar da casa, ele não se opôs, o que ganhava no escritório dava muito bem
para manter o padrão de vida deles.
Há
determinadas coisas na vida que não temos como disfarçar...
O metrô chegou dispersando os
pensamentos dele.
Somos
apenas carne, um amontoado de carne.
___ Com licença, senhor. __ disse
uma jovem.
Quando
foi que eu deixei de ser apenas um rapaz? Quando foi que eu me tornei um
senhor? Isso parece tão sério: senhor... parece que o sorriso se foi, levando
minha juventude com ele.
Embora ainda não tivesse 40 anos,
trazia sempre o rosto fechado, sério, não parecia mais a pessoa descontraída
que era na faculdade.
A
discussão ontem começou por causa disso, Nancy me acusou de não ser feliz
porque eu não sorrio mais. Agora tudo é motivo de briga. Não há motivo algum
para eu sorrir.
Na semana anterior, encontrou a
esposa esperando sentada no sofá, com uma taça de vinho na mão.
___ Cada dia você chega em um
horário diferente em casa. Não o esperei para jantar.
___ Pelo visto você preferiu nem
jantar.
___ Sozinha? Não.
___ Nancy, você sabe muito bem
que nem todas as audiências que eu faço são no Centro, às vezes eu vou para
longe.
___ Deveria ir trabalhar de
carro, assim você não demora tanto para voltar.
Tirando a gravata, ele sentou no sofá
exausto.
___ Você sabe que eu detesto
dirigir.
___ Não, eu acho que o seu
problema não é esse, você adora demorar na rua, provavelmente fazendo alguma
coisa que eu não sei.
___ Nancy, estou cansado, amanhã
tenho que trabalhar cedo, realmente estou sem paciência para ficar discutindo
com você.
___ Nem um carinho você me dá,
nem de amor você me chama... __ começou a chorar__ Antes de nos casarmos você
parecia ser tão feliz, estava sempre sorrindo. Qual é o problema? Qual é o seu
problema?
Em silêncio, Maurício pegou o
paletó, a gravata, a pasta e foi para o quarto. Simplesmente detestava aquelas
ceninhas patéticas que pareciam tão ao gosto da mulher. Pelo visto ela beberia
a garrafa toda e talvez dormisse na sala mesmo.
Pegou na pasta um documento, na
verdade um cartão com algo escrito, sentiu um enorme conforto olhando para
aquilo.
Vivemos
de nossas escolhas, mas não precisamos ser reféns delas.
Toda a erudição desse pensamento
não o confortou, até mesmo Shakespeare sofreu com a indecisão.
___ Como era mesmo aquela
passagem? __ perguntou para si __ Lembrei: “Ser ou não ser, eis a questão: será
mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e flechas com que a Fortuna,
enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provocações e em luta
pôr-lhes fim?”
Recitar
Shakespeare a uma hora dessas... francamente, preciso descansar.
Mas a sensação de incômodo
persistiu, o vazio daquela vida era enorme.
Amanhã
eu vou!
Naquela manhã acordou feliz,
corajoso. Estava assoviando quando ouviu Nancy pedindo para ele parar com o
barulho porque estava com dor de cabeça.
Nada como uma descarga de mau humor para
acabar com a manhã.
Oscilando
entre a vontade e o medo, Maurício mal sentiu o dia passando.
Desceu
apressado do metrô, com passos rápidos chegou ao seu destino.
Há quanto tempo não venho, deveria ter dado
um fim nisso há muito tempo!
A
rua era pouco movimentada, mas no bairro onde estava ninguém acharia estranho
ver um homem, elegantemente vestido, parado na rua. O bairro de classe média
alta era famoso por sua tranqüilidade.
Ressabiado,
olhou para os dois lados da rua, não havia nada com o que se preocupar.
Vou entrar!
Não
sabia o quanto era feliz ali, o quanto sua vida mudava de significado, parecia
ter um rumo, uma direção.
É festa!
Seu
armário continuava da maneira como o havia visto pela última vez, tudo no mesmo
lugar, tudo o que precisava estava ali. Tocar em seus objetos era como ser
transportado para outro mundo.
___
Pensei que não veria mais você, Maurício.
___
Você sabe que eu sempre volto.
___
Eu poderia não estar aqui. Você não telefonou.
___
Eu sei que te devo desculpas... __ a frase ficou em suspenso.
Havia
uma pergunta a ser feita:
___
Hoje vai poder ficar um pouco mais?
Ele
pensou, adoraria dizer aquele par de olhos castanhos que ficaria para sempre,
mas sabia que não podia, a vida, o mundo, continuava a girar lá fora e ele
precisava fazer parte disso.
___
Não. __ a voz saiu insegura, carente.
___
Lembra da última vez?
___
Como eu poderia esquecer? Foi fantástico, penso nisso todos os dias.
___
Que bom!
___
Sabe que eu sofro, sou fraco.
___
Todos nós sofremos, mas há um provérbio japonês antigo que diz o seguinte:
“Aquele que ri, ao invés de enfurecer-se, é sempre o mais forte.”. Todos somos
fortes a nossa maneira.
___
Eu te amo.
___
Maurício... ah... Para que perder tempo com jogos de palavras. Eu também te
amo. Vou te deixar a vontade.
O
silêncio era completo, havia apenas uma luz acesa e ele se colocou no meio
dela.
O
som suave do piano acompanhou a voz nos primeiros acordes de “Ne me quitte pás”
ao melhor estilo de Piaf.
Os
aplausos surgiram.
Estou feliz!
Ao
cantar o seguinte trecho, buscou os doces olhos amados:
“Moi
je t’offrirai
Des
perles de pluie
Venues
de pays
Où
il ne pleut pas
Je
creuserai la terre
Jusqu’apres
ma mort
Pour
couvrir ton corps
D’or
et lumière” [i]
Estava
no seu auge, maravilhoso, sublime.
Os
últimos versos sempre guardam surpresas, e ao imprimir sua voz suave em:
“Laisse-moi devenir” [ii],
ouviu-se o som ensurdecedor de um tiro sendo disparado.
A
diva estava caída no chão. Todos correram para ampará-la, inclusive sua algoz.
___
Maurício me perdoa. Eu estava louca, desconfiada, segui você até aqui. Oh, meu
Deus, o que foi que eu fiz? Não morra, não morra...
A
voz estava difícil de sair, a dor era lancinante.
___
Nancy, eu tentei, mas não consegui.
___
Maurício, por favor, não vá embora. Agora que ela sabe de tudo ainda podemos
ficar juntos.
A
voz de André penetrava como que vinda de longe nos ouvidos de Maurício.
___
Je ne vais plus pleurer.[iii]
Eu te amo, André, jamais deveria ter escondido o que eu era.
Aos
poucos os olhos foram se fechando, o silêncio tomou conta de tudo, seu corpo já
não sentia mais dor, estava partindo, partia como deveria ter nascido.
As pessoas acabam esquecendo de quem são. As pessoas criam imagens de uma e outra e não conhecem quem verdadeiramente está ao seu lado. Não existem amor entre as pessoas dessa sociedade.
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