___ Fracassado!
Que situação, agora até mesmo o espelho
fala mal de mim.__ pensou Anderson.
___
Não estou falando mal de você, só estou falando a verdade. Você é um
fracassado! __ falou sua própria imagem refletida no espelho.
___
Olha aqui, eu sou um escritor, e vou fazer muito sucesso! Está me ouvindo? Eu
vou fazer muito sucesso! __ gritou Anderson.
A
voz imediatamente cessou.
Ele
tinha um encontro com Paula, teria de se arrumar o mais rápido possível.
Terminou de se barbear e foi direto para o chuveiro.
Ela vai adorar a surpresa! Quando ela
sorrir e disser que me ama, direi o mesmo para ela e seremos muito felizes.
Paula
trabalhava como recepcionista em uma clínica ali perto e Anderson resolveu
surpreendê-la se escondendo atrás de uma árvore.
___
Olá, princesa. __ disse ele.
___
Você quase me assustou, heim.
___
Sorria.
___
Adoro o seu jeito brincalhão, já estou me acostumando.
___
Sendo assim, uma menina tão bem comportada, não tenho outra coisa a fazer que
não seja levá-la para tomar um chope gelado e comer alguma coisa de frente para
o mar. __ riram juntos.
___
Nossa, que convite maravilhoso! O que estamos comemorando? Recebeu um aumento e
já vamos gastar? Adoro isso!
Abraçados,
sentaram em um quiosque do calçadão de Copacabana.
Após
brindarem a novidade de que Paula ainda nem tomara conhecimento, Anderson
finalmente falou o que era.
___
Larguei o emprego. __ disse ele.
___
Como?
___
Saí do trabalho. Daqui para frente vou me dedicar exclusivamente ao meu
talento: serei um escritor!
___
Como assim? __ indignada com a notícia ,Paula tentava entender o significado
daquilo tudo __ Como assim, Anderson? Como largou o trabalho e agora será
escritor?
___
Amor, é simples. Pedi para sair da empresa, fiz acordo. Trabalhei lá por um
ano, tenho direito a algumas parcelas do seguro desemprego, não vou ficar
completamente sem dinheiro, terei o suficiente para escrever o meu livro.
Paula
sempre fora muito regrada com relação as finanças, morava de aluguel em um
kitnet bem pequeno, juntava tudo o que podia para pagar a mensalidade do curso
de enfermagem, que fazia à noite. Para ela aquela era uma loucura sem tamanho.
___
Paula, eu já publiquei um livro uma vez, deu certo.
___
Anderson, você publicou um livro com os seus recursos, você mesmo que teve de
pagar pela maior parte das despesas. Tirando a sua mãe, que comprou umas trinta
unidades, poucos foram os amigos que compraram. Isso sem falar que mais ninguém
apareceu no lançamento.
___
Eu sei disso, por esse motivo que eu preciso me concentrar, para escrever
melhor, dar vazão aos meus pensamentos, a minha criatividade.
Anderson
estava tão orgulhoso de si, que parecia impossível contrariá-lo, parecia que
tudo realmente daria certo, mas Paula era uma mulher vivida, nascida e criada em
um bairro pobre da zona oeste da cidade, sabia muito bem o que era não ter os
pés no chão, seu pai vivera a vida toda com ares de grandeza e morreu pobre,
sem dinheiro sequer para o enterro, a mãe partira logo depois.
___
Anderson, não quero bancar a chata, sei que você tem talento, que o seu
trabalho é bom, adorei o seu livro, mas as coisas não podem ser feitas dessa
maneira, você não pode largar tudo...
Ele
não entendia porque a namorada parecia tão desolada, o sucesso viria.
Mas
havia aquela voz bem lá no fundo de seu cérebro que teimava em chamá-lo de
fracassado. Ele havia tentado divulgar nas redes sociais seu livro, escrevera
para o jornal, sempre que podia falava com as pessoas sobre sua obra, mas nada.
Na
lista dos mais vendidos estavam romances açucarados, vendidos para o cinema, ou
livros de autoajuda, no qual propagavam que poderiam mudar sua vida em semanas,
ou ainda, livros que diziam que poderiam proteger seu casamento.
Anderson
estava farto disso, queria trazer algo inovador, um trabalho diferente de tudo
o que o Brasil costumava importar do estrangeiro.
___
Paula...
___
Anderson, assim fica complicado. Antes, quando você ainda trabalhava, as coisas
já estavam difíceis, a gente quase não saía, só um cineminha de vez em quando,
mas eu entendia, porque eu sei que o dinheiro anda curto, mas agora, pelo visto
tudo vai piorar.
___
Amor, nós podemos economizar um pouco mais... olha... podemos ficar mais em
casa, fazer caminhada pelo bairro, ver filme da televisão.
___
Ah, ta, e quando o dinheiro ficar mais curto ainda, o que vamos fazer? Vamos
diminuir a comida também?
___
Pode ser, eu estou mesmo precisando fazer uma dietinha, e você já é magra. __
olhou para ela com o seu melhor olhar de cãozinho abandonado.
Paula
olhou-o bem fundo nos olhos e levantou da mesa.
___
Ei, aonde vai? Eu estava só brincando... macarrão ainda tem um preço
razoável... vai dar para comer.
Ele
se sentiu um incompreendido, Einstein também tivera dificuldades no tempo dele,
chegaram a dizer que o famoso físico não chegaria a lugar algum.
Falando
para si mesmo, ele disse:
___
Beethoven era como eu, as pessoas não o entendiam bem. Ele era desajeitado com
o violino, preferia tocar suas próprias composições, não estava nem aí para
melhorar a técnica e ficar reproduzindo o repertório dos outros.
Na
terceira rodada, ele que não estava acostumado a beber, começou a conversar com
o garçom.
___
Você sabia que Alexander Graham Bell foi o grande inventor do telefone? Pois é,
ele tentou vender sua invenção para uma grande empresa americana e sabe o que
eles disseram? Não. Foi a resposta que ele recebeu.
Como
o movimento ainda era pouco, o rapaz deu um pouco de atenção àquele cliente.
___
Obrigado, meu amigo, obrigado por me emprestar seus ouvidos. Ela me dispensou,
mas eu te digo, um dia eu serei famoso, vou fazer muito sucesso com os meus
livros. Houveram outros gênios não reconhecidos em um primeiro momento de suas
vidas. Darwin escreveu a Teoria da Evolução, mas não quero falar muito sobre
ele, só reconheceram o seu valor quando já estava morto, não é um exemplo lá
muito bom, dada a atual conjuntura; Thomas Edison inventou a lâmpada elétrica e
o gramofone, os professores dele chegaram a dizer que ele era burro demais para
aprender qualquer coisa. Enfim, tantas pessoas talentosíssimas...
___
Senhor, posso lhe dar um conselho? Vá para casa, descanse um pouco... Vai ser
melhor .
___
Não sei se você está dizendo isso porque eu posso acabar ficando bêbado aqui e
dando trabalho ou não, e olha que essa é uma possibilidade. __ ele riu __ Mas
prefiro acreditar que suas sóbrias palavras são para o meu bem, vou embora.
Pagou
a conta e deixou uma gorda gorjeta para o rapaz simpático.
O
dia seguinte surgiu tímido, de sol ameno, até meio frio.
___
Nada como um friozinho, um chocolate quente e o meu computador para começar a
escrever.
E
assim ele fez na semana que seguiu.
Escrevi um capítulo inteirinho. Que maravilha,
eu sou muito bom mesmo. __ pensou.
O
espelho novamente falou com ele:
___
Fracassado.
___
Olha aqui, eu sei muito bem quem você é. Você é minha estima que anda em baixa.
Fica aí me atormentando, me chamando de fracassado. Faz parte do processo de
escrever ser questionado por si mesmo.
___
Então essa é a sua desculpa para não ter se barbeado esse tempo todo? Por isso
você não veio aqui e me encarou de frente?
___
Está ficando meio estranha essa nossa relação, você não acha? __ riu, sem graça
__ Tudo bem que eu adoro falar comigo mesmo, sou um excelente ouvinte mas,
sinceramente, você está me incomodando... Isso é assédio.
___
Prefere chamar de assédio sua consciência pesada, é?
___
Olha aqui __ disse ele olhando duramente para sua imagem no espelho __ não
estou com a consciência pesada, fiz o certo.
___
O certo para quem?
___
Para mim, para a sociedade... Eu não poderia ficar trabalhando em uma coisa que
eu não gosto.
___
Então você prega que só devemos fazer o que gostamos?
___
Mas é claro?
___
Nunca passou pela sua cabeça que quando o que gostamos se torna obrigação já
não gostamos tanto? Muitos escritores têm outras funções, escrever é só uma
delas.
___
Está bem, está bem... hoje você está inspirado para me perturbar.
___
Já que eu sou você, logo você mesmo está se questionando.
___
Ai, definitivamente devo estar pirando. Aqui, trancado dentro do meu
apartamento, ouvindo o meu reflexo no espelho. __ dramaticamente acrescentou __
Vale tudo pela arte.
___
Não sei se isso te consola, mas Virgínia Woolf, Van Gogh e Lima Barreto, tinham
problemas psiquiátricos, mas eram muito criativos. Barreto, por exemplo, foi diagnosticado
com neurastenia, além de sofrer de depressão.
___
Já chega! Nem mais uma palavra! __ disse Anderson, o de fora do espelho,
enfático.
Um
mês depois e ele resolveu ler tudo o que havia escrito até aquele momento. Leu,
leu de novo e de novo, até que finalmente decidiu enviar para um amigo ler.
Era
a história de um vampiro deprimido que criticava a sociedade por seu
parasitismo, já que tivera centenas de anos para observá-la. Cansado da
solidão, ele resolveu arrumar uma companheira para passar a eternidade, mas
ninguém quis se envolver com ele, porque o trapalhão foi mordido quando já era
velho e ainda por cima, feio.
Aqui eu trabalho vários temas, como o fato
de a sociedade ter evoluído tecnologicamente, mas não tendo convertido isso
para um bem maior, deterioraram o planeta. Muito boa essa! Além de ter a
questão da imagem, de como a imagem é importante até mesmo para se conseguir
uma companheira.
Eu sou muito inteligente!
Depois
de quase uma semana de espera, o amigo respondeu dizendo que a ideia não era
nem um pouco original e que o tema era fraco.
Anderson
teve que dar o braço a torcer, sabia que o texto era ruim, mas não quisera
admitir. Ficou deprimido, mais isolado ainda dentro de casa.
Dormia
e acordava olhando o notebook fechado,
não tinha vontade de escrever sobre outro tema, continuava pensando em seu
vampiro bonachão.
Quando
largara o emprego, ele achava que seria fácil produzir algo, já que estava em
casa, confortável, com todo o tempo do mundo, mas descobriu o óbvio, inspiração
não surge no momento em que se deseja, ela simplesmente brota de algum lugar do
cérebro.
Quando
a campainha tocou, ele se surpreendeu, havia pedido aos amigos que não o
procurassem porque, segundo ele, estava criando.
___
Oi. __disse Paula.
___
Oi. __ surpreso, ele não sabia mais o que dizer.
___
Estava preocupada com você. Não me ligou e nossos amigos não o veem mais. O que
houve?
___
Não precisa se preocupar, eu__ enfatizou a palavra__ estou muito bem, estou escrevendo
o meu livro.
___
Então me mostra como ele está ficando.
___
Um livro é como uma noiva, não pode ser visto antes de estar pronto.
___
Anderson, eu te conheço. Você não produziu algo que valesse a pena continuar, porque
do contrário você iria correr para me mostrar e jogar na minha cara o seu
talento.
___
Eu não seria tão cruel assim, na verdade eu apenas telefonaria dizendo como
estava indo tudo.
Ela
sabia que ele estava tentando provocar o riso.
___
Ah, então você não tem nada mesmo. Olhe em volta, esse apartamento está todo imundo,
os armários estão vazios... você está em dificuldades.
___
Eu diria que estou apenas jejuando um pouco.
Paula
não conteve o riso, mesmo nas situações mais precárias ele era engraçado, ela riu
daquele maluco inconsequente que ela tanto amava.
O
sorriso dela era tão lindo, que ele sentiu o coração apertar, assim como o
estômago, claro, e outras vontades surgiram também.
___
Venha, vou ser seu mecenas hoje e vou te levar para jantar.
Depois
do jantar, foram juntos para a casa dele e fizeram amor.
___
Anderson, você tem que sair um pouco daqui, olhar a rua, ver as pessoas. Quem sabe
sua inspiração não volta?
Mais
confiante, seguiu a risca os conselhos da namorada, mas sua inspiração não veio
e o dinheiro acabou.
___
Paula, me dou por vencido... vou procurar um emprego, talvez seja melhor assim.
Ela
ficou triste por ver a tristeza dele, mas não tinha como ajudá-lo.
___
Estou aqui, espelho, pronto para ouvir seu sermão.
Mas
seu reflexo não respondeu a provocação. Anderson começou a achar que talvez
tenha enlouquecido por um curto espaço de tempo, nunca saberia.
Como
tinha experiência em planilhas, conseguiu um emprego no escritório de um pet
shopping, era o gerente.
Os
animais eram a paixão dele, todos os dias conversava com eles, fazia carinho e
os mimava, sabia o nome e a raça de cada um deles.
Foi
assim que ele teve a ideia de escrever uma história infantil em que os
animaizinhos eram os protagonistas que viviam as maiores aventuras enquanto
seus donos dormiam.
A
história foi extremamente elogiada por Paula.
___
Sucesso! __ disse ela.
___
Vai ficar melhor ainda, vou pedir a um amigo para fazer uma parceria comigo,
acho que esse livro deveria ser digital, hoje em dia as crianças vivem com
eletrônicos nas mãos, elas vão adorar.
Não
só o amigo topou, como conseguiram patrocínio para a empreitada.
___
O meu escritor favorito merece uma série de cuidados regados a champanhe. __
disse Paula.
Anderson,
que estava no computador, salvou tudo e apagou a luz.