quinta-feira, 18 de junho de 2015

Pontilhado



O espelho está quebrado
As luzes estão espalhadas
A felicidade está sumida
E o sorriso está morto
A boca não emite som
O corpo não tem calor
Os caminhos estão vazios
O espaço está perdido
O vento avança
Caminha pelas paredes
Sopra a poeira
Coloca-as em outro lugar
Partículas, pequenas partículas
Esperanças vãs
Como a imensidão do universo e a finitude da existência
Tudo mensurando o nada
Que marcou o início
Hoje fim.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Quando foi mesmo?



Ela estava pensando nessa pergunta quando o filho tocou a campainha, abraçou-a forte, mas não disse nada. Ainda sem resposta, outras pessoas foram chegando, todos a abraçavam e se mostravam eficientes em organizar tudo.
Pensando se deveria ou não sair da sala, Lúcia ouviu o telefone tocar, atenderam e disseram-lhe que era a filha que morava na Europa. Ela o pegou no mesmo instante em que a resposta lhe veio a mente.
___ Como a senhora está?
___ Estou bem.
___ Mãe, e agora?
Nem ela sabia como seria o agora.
___ Não sei... __ desabafou
___ Vou pegar o primeiro avião.
___ Não, filha, não faça isso.
A conversa continuou por alguns minutos, cheia de perguntas não elaboradas e sequer respondidas.
Desligou.
Resolveu ir para o quarto, iria deitar, fechar os olhos, mesmo sabendo que seria impossível dormir. Bateram suavemente, era uma sobrinha mais que querida, era como uma filha.
___ Quer conversar?
___ Não, meu anjo. Obrigada.
“Anjos, eles vêm e vão.”
___ Mãe, está na hora, temos que ir. __ disse o filho mais velho, Fábio.
“Hora, ela passa a nossa revelia.”
Olhando para ele, ali, imóvel, sentiu o corpo fraquejar, mas Leonardo, o caçula, não permitiu que esmorecesse.
___ Mãe, estou aqui. __ sussurrou ele no ouvido dela.
“Obrigada.“ Respondeu ela com os olhos.
Pouco falou durante o velório... não havia o que dizer. Recebeu os pêsames ainda sem acreditar em tudo aquilo.
___ Quando foi mesmo? __ perguntou ela em voz baixíssima para si mesma __ Foi anteontem, foi anteontem que eu pensei muito forte nele e disse ao meu neto que deveríamos ir visita-lo, mas acabei não indo.
Não havia nenhuma testemunha por perto que pudesse ouvir tal desabafo.
Passado o sepultamento disse que estava bem, que não se preocupassem, mas a família, amorosa, não a deixou sozinha, todos passaram a noite em seu apartamento.
Os primeiros meses foram dificílimos. Embora não vivessem mais sobre o mesmo teto, ela sentia falta dele, sentia falta de ouvir a voz dele dizendo: “Lúcia, fica calma. Eu estou aqui. Eu vou resolver.”
___ Quando foi mesmo que eu comecei a chamá-lo de anjo? __ se perguntou ela __ Foi quando estive internada no hospital... ele fugiu do quartel, pulou a janela do meu quarto só para me ver, dizer que me amava, que sempre estaria ao meu lado. Desde então, sempre o chamei de meu anjo.
Ela falava isso para o neto, que a olhava com olhos de menino crescido, mais velho do que seus doze anos.
Mas um menino não pode ouvir tudo o que o coração de uma viúva guarda e ela sabia disso.
Ah, eram tantas as histórias, tantas lembranças...
O dia parecia como outro qualquer, Lúcia havia ido trabalhar e depois seguira para a escola noturna. Quando saíra, junto com a irmã, passaram por um belo rapaz. De porte atlético e bem comunicativo, ele as abordou. Tímida, ela mal falou durante o período em que os três caminharam juntos, toda a conversa ficou por conta da irmã, mais desenvolta  que ela.
Chegando a casa, as moças contaram à madrasta sobre o novo amigo. Ao que tudo indicava, Ana havia arrumado um paquera.
No dia seguinte, ele estava na porta da escola. Ela ficou paralisada, foi tomada por uma enorme timidez.
___ Oi.
___ Oi.
___ A Ana não veio hoje.
___ Ela está bem?
___ Sim. Saiu tarde do trabalho, estava cansada.
___ Que bom que não houve nada demais com ela. Mas... na verdade, eu vim ver você.
Ela não respondeu.
“Essa timidez me mata!”
“Já são quase onze horas e eu ainda não preparei o almoço para o Matheus ir à escola. Estou aqui parada lembrando coisas que aconteceram há quase quatro décadas. Só eu mesma!”
Entre idas e vindas ao passado, Lúcia foi vivendo sua viuvez.
O tempo fez com que se tornasse uma boa ouvinte, além de uma excelente conselheira amorosa para a geração mais nova. Achava que sofriam demais, que choravam demais, que se entregavam demais para os vícios. Pensava constantemente que não sabiam amar.
“Amar, fazer amor... hum... é tão bom.” __ lembrou sua primeira vez.
___ Vamos não vai acontecer nada que você não queira. É só para não ficarmos nos expondo na rua.
Quando chegaram ao quarto de hotel, ele tirou a camisa, acendeu um cigarro, sentou bem na beirada da cama e perguntou se ela podia massageá-lo.
Ao começar a tarefa de que fora incumbida, ela não resistiu, beijou toda a larga extensão daqueles ombros e mordiscou-o na nuca, enquanto tocava o seu peito nu. Ele não aguentou, em fração de segundos estava sobre ela desabotoando sua blusa de cambraia branca.
Embora seu corpo estivesse em chamas, o amado apenas tocou timidamente seus seios quando lhe tirou o soutien e, em seguida, a saia. Antes que a última barreira fosse puxada para baixo, ela foi suavemente incitada a sair da cama. Olhou-o de frente. Sabia o que ele queria: ele a despira, agora era chegada a vez de ela fazer o mesmo com ele.
Másculo, estava ereto, pulsante.
Lúcia sempre fora uma mulher de atitude, quando tomava uma decisão, não costumava se arrepender, estava ali por vontade própria, amava o homem que estava a sua frente, iria até o fim.
Zé, José...
Com carinho, permitiu que ela se acostumasse ao peso do corpo dele sobre o dela, beijou toda a extensão do rosto, chegando aos olhos, passando pela orelha.
Jamais haviam ido tão longe nas carícias... o corpo frágil estremeceu, relaxou.
 A dor que sentiu foi substituída pelo prazer e abafada pelo som que vinha dos lábios dele, palavras a princípio ininteligíveis, mas que foram repetidas, várias vezes:
___ Você é minha! Eu sou seu!
O fato estava consumado.
Descendente de italianos, ele sabia o quanto o sangue de um pai pode ferver ao tomar conhecimento de que sua filha não é mais virgem. Ainda mais um pai rigoroso como o dela.
Cheio de coragem, pediu ao futuro sogro a mão de Lúcia em casamento. Foi um dia memorável!
___ Vó. __ disse Matheus __ Está tudo bem?
          Ela o olhou sentindo os olhos queimarem.
          ___ Está sim, meu amor. Não se preocupe.
          Mas não havia um pingo sequer de verdade no que dizia, e ela sabia disso. Mesmo enquanto se ocupava de alguma coisa, sentia o calor das lágrimas em sua face. Ela sabia que a dor estava chegando, mas não sabia como neutralizar esse sentimento.
          Casara grávida, mas o pai jamais soube disso, na época, isso seria um escândalo.
          “Hoje as coisas são tão diferentes. Ainda que tenham vários métodos contraceptivos, as moças engravidam e acham muito normal criarem seus filhos sozinhas, sem o pai por perto.”
          O espaço onde foram morar era bem pequeno, mas ela o fizera parecer um verdadeiro lar. Dona de um senso estético ímpar, acomodou as expectativas de uma jovem esposa e futura mãe, com o romance da lua de mel. Entre cortinas e flores, eles viveram ali o primeiro ano de casados.
          ___ Ser feliz nunca foi um projeto de vida para nós, não víamos a felicidade como algo a ser alcançado. Eu e o seu tio __ disse para Mariana __ simplesmente éramos felizes.
          ___ Tia, a senhora fala coisas tão bonitas.
          ___ Obrigada, mas...
          ___ Mas...?
          ___ Mas a felicidade e a dor caminham muito próximas uma da outra. Eu paguei um preço enorme pela felicidade que tive.
          Nem tudo fora fácil para aquela mulher, muitas foram as brigas, muitas foram as noites que dormiram sem se falar por conta dos excessos dele. Tratava-se, na verdade, de um homem boêmio, gostava de ficar com os amigos até tarde, achava isso normal, e, para piorar, ainda tinha o fato de ser extremamente possessivo. Tinha muito ciúme dela, não gostava que a tocassem, que chegassem perto demais.
___ Quando foi que o tio resolveu morar na casa que ele herdou da mãe dele?
___ Quando foi? Sabe, há um tempo que eu venho pensando nessa pergunta.
Mariana, ainda que tenha achado a fala da tia meio deslocada, não comentou o fato, permaneceu em silêncio.
___ Não foi ele que resolveu, fomos nós. __ respondeu Lúcia __ Acho que ambos nos cansamos dos desentendimentos, ficamos só com a parte do amor, o amor propriamente dito. Os filhos estavam criados, casados... Como você sabe, nos víamos com frequência, cultivávamos o jardim daquela casa juntos... ele tinha uma mão tão boa para plantar... Adorávamos conversar, conversávamos até demais... parecia... parecia que nada havia mudado, eu tinha a impressão de tínhamos sido transportados para o início da nossa vida de casados.
___ O jantar vai ficar pronto daqui a pouco.
___ Eu não estou com muita fome, na verdade eu quero outra coisa da minha mulherzinha linda.
___ Olha, __ foi falando, rindo __ estou grávida.
___ E eu não sei. Mas fique tranquila, não vou machucar nenhuma das duas. Só quero um pouco de você em mim.
Lúcia apagou o fogo e foi para o quarto. Não via aquilo como símbolo de submissão, como mulheres diriam, ela também gostava desse ato de liberdade, parar tudo e se amar.  
Unir seu corpo ao dele era...
___ Tia... tia...
___ Oi, Mariana, desculpe..., eu estava meio longe. __ riu.
___ Hum, esses olhos estavam brilhando... __ sorriu, doce.
___ O amor amadurece, junto com os que amam.
___ Hoje a senhora está inspirada. Deveria escrever isso.
___ Boba, estou falando sério. Quando eu ia para lá, colocávamos as cadeiras do lado de fora e nos sentávamos ali, ríamos de ver as velhinhas do outro lado da rua tricotando sobre a vida dos vizinhos. Era tão bom...
___ Ele te amava tia.
___ Eu sei, eu também o amo.
Mariana conhecia muito bem sua tia e sabia que ela não havia trocado os tempos verbais.
___ Tia... __ ela sentiu a garganta ressecar, o assunto era espinhoso __ Ele se foi...
___ Eu sei... eu sei... mas é tão difícil acreditar, eu sinto a presença dele em vários momentos do meu dia.
___ Tia, nós não nos desfazemos do nosso passado, carregamos nossa história para todo o sempre, mas me preocupa a maneira como isso pode estar sendo visto pela senhora.
___ Eu continuo a mesma. __ desconversou.
“O mundo não foi feito em um dia, ela não vai mudar de uma hora para outra.” Pensou Mariana.
___ Oi, Lúcia, tudo bem? __ disse uma voz masculina do outro lado da linha.
___ Oi. Quem está falando?
___ Meu nome é Marcos, eu conhecia o seu falecido marido há uns anos, ele inclusive nos apresentou.
___ Desculpe, Marcos, mas realmente eu não estou lembrando.
Ele explicou mais a situação, disse ainda que estava viajando na época em que o amigo falecera, por isso não entrara em contato antes.
A conversa foi agradabilíssima e Marcos pediu permissão para continuar ligando. Elegante, ele só o fazia uma vez por semana, pontualmente às sete da manhã, só para dar um bom dia, e começar o dia com a voz dela em seus ouvidos.
Passaram a se encontrar. Passeavam, conversavam...
Os mais íntimos perceberam algumas mudanças, mas não comentaram nada. Fosse o que fosse, aparentemente, estava fazendo bem a ela.
Com olhos acostumados a ver mais do que estava posto, ela sabia que a expectativa era companheira da frustração.
Deixou apenas que o calor das mãos de Marcos aquecesse as suas, que as conversas ficassem mais a cabo dele. Reservou-se o direito de ser um barco a deriva, optou por esperar o vento balançar suas velas e leva-la a algum lugar. Aquela sensação de bem estar iria aumentar ou arrefecer? Perguntou-se.
Infelizmente a dor e a saudade não a deixaram, soube que ainda não era o momento. Decidiu se afastar e comunicou a ele sua decisão.
___ Lúcia, eu te entendo, mas até certo ponto. Você é uma mulher maravilhosa, ainda tem um tempo bom pela frente, precisa permitir que te conheçam melhor.
Quase fraquejou, quase permitiu que a dúvida entrasse em seu espírito...
Abraçou-o. Coração com coração... pele com pele...  
Sentiu a respiração dele em seu pescoço, o cheiro do perfume, sentiu mais do que poderia aguentar... Os braços que a envolveram eram sólidos e cheios de promessas futuras, mas isso não fora suficiente para varrer a tristeza de seu coração.
Não se tratava de um simples “mise-en-scène”... ele deveria ser o homem ideal, mas para outra mulher. Não havia vencedores ou perdedores, somente duas almas que se encontraram para descobrirem que não eram gêmeas e seguiriam seus caminhos.
Ele ainda a procurou, por uns tempos, mas apenas perguntava como ela estava.
“Como o tempo passa rápido, faz mais de um mês que ele não me liga. Vai ver seguiu a vida, no que ele faz muito bem.”
___ Oi, mãe.
___ Oi filho.
___ Não poderia deixar de vir aqui, justo num dia tão especial como hoje.
Leonardo lembrava um pouco o pai, tinha um coração amoroso, sensível.
___ Um ano.
___ É... estamos há um ano sem ele.
          Curiosamente ela não sentiu vontade de chorar, nem aquela dor no peito que a afogueava.
          Não sabia ao certo que rumo sua vida estava tomando, mas não tentaria achar uma resposta.
Um pensamento surgiu em sua mente:
“Quando foi a última vez que me senti assim? Não importa, uma nova vida não tem data certa para começar.”
Ainda em profunda reflexão, Lúcia concluiu que quando nos perguntamos quando foi, estamos olhando para o passado, ou ainda, quando nos perguntamos quando será, estamos olhando para o futuro e enquanto nos fazemos tais perguntas, ignoramos o presente.
“É, o melhor é não perguntar, e, sim, viver da maneira que pudermos.” Intuiu.




FIM