Ele já estava no terceiro cigarro. Bem acomodado
em sua melhor poltrona, observava a tudo impassível.
Ela
se movimentava freneticamente de um lado para o outro. Alguns objetos ela
colocava com calma na caixa, outros ela literalmente jogava lá dentro.
___
Vou levar os cisnes de quartzo rosa. __ disse ela.
___
Bianca, foi presente da minha madrinha. Não vou te dar! __ respondeu ele.
___
Fico então com as taças de cristal.
“Mais um
cigarro. Assim o maço vai acabar logo e o pior é que a essa hora a tabacaria da
esquina já está fechada.”
___
A caixa vai abrir no fundo. __ observou ele.
___
Não vai me ajudar?
Uma
tragada, seguida de uma baforada. Ele a observou por entre a fumaça.
___
É piada? __ finalmente respondeu.
___
O quê?
___
Eu perguntei se é piada.
___
Seu cretino! Claro que não é piada.
___
Eu não vou te ajudar, você está me deixando, não vou contribuir para isso.
Por
um momento pareceu que ela iria dizer alguma coisa. Seus olhos, de um verde
desbotado, apresentaram uma luz. Ele reconheceu essa luz assim que a viu. Era o
brilho que a iluminara há dez anos, quando se conheceram.
Aos
treze anos, Bianca era uma menina simples, sem muitos atrativos, mas com
grandes olhos risonhos, que por muitas vezes ficaram tristes e as lágrimas
tiravam o pouco de cor que tinham. Quando isso acontecia, ele a abraçava até
ela quase entrar nele e ficar acomodada em seu coração. Foi assim, abraçados,
que fizeram amor pela primeira vez.
O
casamento, digno de dois apaixonados com pouco dinheiro, durara cinco anos e
estava acabando ali, naquela hora, na sua frente.
“Acabou,
a droga do cigarro acabou.”
Remexeu-se
um pouco na cadeira, pensando se deveria ou não ir até o bar preparar uma
bebida.
“Não,
beber agora só vai me dar mais vontade de fumar. Além disso não posso correr o
risco de chegar perto dela, o cheiro daquela pele pode me amarrar, vou acabar
levando ela para o quarto, o nosso quarto. Não, isso não, nunca mais!”
A
porta bateu com força.
___
É... ela fez serviço completo, levou tudo.
Ele
olhou em volta e viu o horrível abajur que a sogra lhes dera de presente
achando que era algo muito elegante, como ela gostava de se gabar.
___
Pois bem, fique aí então, faça parte da requintada decoração clean que agora
tem a casa.
“Definitivamente
preciso de uma bebida.”
Preparou
um Martini. Passava quase todas as noites preparando drinques para os clientes
do bar onde era sócio, tinha o direito de tomar um trago.
A
bebida não o relaxou. Achou melhor sair um pouco. Caminhou pelas ruas onde
sempre passava na madrugada. Naquele dia quente e abafado as pessoas estavam
nos bares, rindo, conversando, namorando. Na hora em que saía do trabalho não
via ninguém, estranhou um pouco tantas vozes e sorrisos.
Foi
ao barzinho onde sempre encontrava os amigos. Conversou com um, com outro e
assim foi por longos doze meses. Achou melhor não sair por aí contando que a
mulher o deixara. Não que não tivesse confiança nos amigos, não tinha confiança
ainda nos seus sentimentos para tocar no assunto.
Conversou
apenas com uma pessoa, mesmo assim, superficialmente. Elias era o homem ideal
para saber do ocorrido. Calado, discreto e sensato, o amigo apenas o olhou, não
disse uma só palavra, mas não deixava de atendê-lo quando ligava para conversar
ou o chamava para assistir futebol na televisão.
Elias
ligou para Samir e o chamou para ir ao bar de sempre, naquela noite haveria um
duelo de bilhar.
Os
jogadores pareciam bastante concentrados, competitivos, mas nada que os fizesse
perder a amizade. Por fim sobraram apenas Alessandro e Renato. O primeiro era
mais velho, um pouco mais lento nas tacadas, já o segundo era arrojado, rápido.
Samir intimamente torcia por seu amigo, Alessandro, porque achava Renato, um
garoto de uns vinte e dois anos, muito cheio de si. A superioridade técnica de Alessandro
se fez presente e ele ganhou o prêmio de melhor jogador.
Enquanto
Samir e Elias cumprimentavam o vencedor, uma bela morena chegou. Ela sentou a
mesa de uma mulher que ali estava e conversaram animadamente. Nenhum dos três
tiravam os olhos da recém-chegada, que ficou sozinha depois de um quarto de
hora.
“Bonita,
mas não faz o meu tipo. __ pensou Samir __ Não gosto de mulheres com roupas
tão decotadas. Definitivamente não a quero.”
Renato
sentou-se ao lado dela e começaram a conversar.
Cansado,
Samir tomou mais um gole e se despediu. Era carnaval, todos estavam festejando,
mas ele não tinha nada para comemorar, só queria ir para casa e dormir.
No
final de semana seguinte soube que a morena se chamava Ângela, era jornalista e
tinha uma coluna semanal em uma revista.
Foi
preciso mais umas duas semanas para que se vissem novamente, um amigo os
apresentou.
“Metida,
fala do trabalho dela de um jeito, como se fosse a coisa mais importante do
mundo. Bom, mas ela não é o problema, é a garota do Renato. Ele que a aguente.”
A
separação foi um golpe duro para ele e não havia superado o fato. Não amava
mais a ex, mas ainda se sentia sozinho e com raiva das mulheres. Aproximava-se
delas apenas quando o corpo assim o exigia, sentir prazer sozinho não era uma boa
opção. De tempos em tempos ficava com uma garota que conhecia em seu próprio
bar. Não a levava para casa, ia a um motel próximo e ali mesmo a descartava.
Naquela
noite estava se sentindo mais sozinho do que nos outros dias, já fazia um tempo
que não ficava com ninguém. O amigo que o acompanhava falava sobre um assunto
extremamente maçante para ele.
Ângela
apareceu, cumprimentou-o distante. Samir, que não queria passar mais uma noite
só, sorriu-lhe sedutor e a convidou para sentar. O amigo percebeu que estava
sobrando e foi embora.
“Até
que ela não é tão arrogante, parece ser muito inteligente.”
___
Vou ser sincero com você... __ começou ele.
___
Assim você me ofende, achei que estávamos sendo sinceros um com o outro. __
respondeu ela.
Ele
não conseguiu conter o riso, ela tinha senso de humor.
___
Quero te convidar para beber alguma coisa em outro lugar, mas não sei se devo.
Afinal, todos vimos você com o Renato a um tempo atrás, não sou necessariamente
amigo dele, mas não quero me aventurar com alguém que pode ser comprometida.
___
Comprometida?
___
É, chamam você de “a garota do Renato”.
___
Aos trinta e três anos de idade ser chamada de garota é um elogio e tanto, mas
não, não tivemos nada eu e ele. O Renato bem que tentou, mas... enfim... acho
que ele é um pouco imaturo, não seria uma boa ideia.
A
sinceridade de Ângela estava em seus olhos, lindos olhos castanhos.
Quebrando
todas as suas regras, Samir levou-a para casa, conversaram mais um pouco e
trocaram o primeiro beijo. Os lábios dela pareciam delicados, mas a língua era
exploratória, desafiadora.
Romântico,
exaltou a beleza da pele dela, o perfume, o corpo. A princípio só queria
olhá-la, captar tudo o que havia nela. Ângela não só sustentou o olhar como o
retribuiu com admiração e respeito.
Amaram-se
sem pressa. Ela o prendeu entre as pernas, deixando clara a vontade que tinha
de que ele ficasse ali, totalmente entregue, dentro dela. O prazer era quase palpável.
Samir permitiu-se ficar preso por um tempo,
mas suas mãos estavam livres e tocou o sexo dela languidamente.
___
Você é quente... _ arquejou _ gostosa.
Ela
não respondeu, apenas gemeu baixinho.
O
momento estava chegando para ambos, mas Ângela tinha outros planos. Pediu que
ele se levantasse e que se amassem de pé, na janela, olhando a lua. Chegaram ao
êxtase juntos. Sonolentos e saciados, dormiram abraçados.
O
sol trouxe um novo dia e a realidade de volta a vida de ambos. Samir deixou-a
em casa e foi embora.
“Não
peguei o telefone dela. Melhor assim, não quero me envolver com ninguém agora.”
Passada
uma semana Ângela voltou ao bar, ele a viu, mas deixou-a pensar que não havia
visto. Estava cheio de ciúmes, queria ver se ela falaria com Renato ou com ele
primeiro.
Inteligente,
Ângela não falou com ninguém, atravessou a rua e deixou o cartão de visitas
dela preso na moto dele.
Depois
que ela se foi, Samir recolheu o cartão e guardou consigo.
“Não
vou ligar. Ela deveria ter falado comigo. O que está pensando?”
Não aguentando mais de
saudades, acabou ligando e marcaram de se ver no bar dele. Ela estava linda
dentro de um vestido branco.
A noite juntos foi maravilhosa, ela estava
feliz por vê-lo novamente e ele mais ainda. Dessa vez havia pressa, muitos dias
haviam passado sem se ver.
Nus,
tomaram banho juntos. O sabonete deslizava macio, a água fria não conseguiu
diminuir a temperatura corporal de ambos. Excitados fizeram amor ali mesmo.
___
Ufa, depois de tanto exercício, bateu uma fome. __ disse ela.
___
Fique aqui, vou preparar algo para comermos.
Ângela
relaxou, respirando suavemente, estava quase dormindo quando Samir voltou com
uma bandeja cheia de sanduíches e suco. O lanche foi devorado com mordidinhas e
gargalhadas.
___
Somos um casalzinho muito fofo! __ disse ela.
Samir
não respondeu, sabia o que ela queria dizer, mas não se sentia preparado para
responder, deixaria no ar a insinuação dela. Ângela pareceu não perceber a
hesitação.
Ele
gostava da companhia da moça, da sua fala cadenciada, pausada, marcada por
risadas inesperadas, por seu senso de humor ambíguo, mas... sentia que não
havia nada mais além disso.
No
início encontravam-se apenas no final de semana, mas acabaram por se ver
durante a semana também, almoçavam juntos ou ela ia ao bar dele para
conversarem no final da noite e depois partiam para a casa dele ou o
apartamento dela.
Maliciosa,
Ângela não perdeu tempo em trazer de volta o assunto do relacionamento deles.
___
Recebi dois convites para ir ao casamento de uma amiga. Eu e meu namorado. __ frisou a última palavra.
“Ela
está apressando as coisas. Não estou pronto ainda, preciso de mais tempo.”
___
Olha, Ângela, eu... eu não quero ser grosseiro com você, mas... bom... acho
melhor você ir sozinha.
___
Não vejo problema nenhum em você ir comigo.
___
Mas eu vejo, sabe? É que...
Um
lampejo de compreensão passou pelos olhos dela.
___
Entendi. Não somos namorados, não temos um relacionamento. Somos apenas duas
pessoas que gostam de fazer sexo, de rir juntos, mas não podemos namorar.
___
Ângela, não me leve a mal, mas eu saí de um casamento agora, não quero me
envolver com ninguém.
___
Por favor, não tente se justificar, vai acabar piorando tudo. Não use a palavra
“agora”, soa mal, porque já faz pouco mais de um ano que você se separou. Tchau.
Ele
a viu sair, viu a mesma porta bater, mas dessa vez de leve, mas dessa vez alguém
com quem ele se importava passando por ela. Não sentiu vontade de sair, queria
ficar em casa, sentindo ainda o perfume dela que começava a se dispersar pelo
ar.
Ligou
para Elias e pediu que o amigo fosse ao bar no dia seguinte.
___
E foi isso, meu amigo, mais uma mulher indo embora da minha vida. __ disse
Samir.
___
Eu diria que ela não foi embora, mas que na verdade, você a pediu para sair.
___
Ela tentou apressar as coisas, eu não estava preparado.
___
Sei... se deixar por sua conta, você não vai estar preparado nunca.
___
Talvez... Não quero me envolver. Preciso mesmo é voltar a vida de antes, sem
compromisso.
Elias
queria chamar o amigo a razão, mas sabia que não iria adiantar, o jeito era
deixar a vida seguir.
Samir
perguntou discretamente se os amigos haviam visto Ângela, mas ela não aparecia
há um tempo. Desde que ficaram juntos pela primeira vez, combinaram que ela não
iria ao bar no mesmo dia que ele, queriam manter a privacidade, mas pelo visto,
mesmo separados ela não voltara lá.
“Melhor
assim.” Pensou.
___
Samir, estão tocando a campainha.
Ele
estava no chuveiro e não ouviu o que a moça havia dito. Sequer se lembrava do
nome dela, estava arrependido de tê-la levado para seu recanto, mas era tarde,
o motel de sempre estava cheio e ele não estava com vontade de procurar outro,
por isso e pela carência trouxera.
A mulher
abriu apenas um pouquinho a porta para ver quem era. Ângela estava ali, com uma
garrafa de vinho e uma sacola pequena. Ambas ficaram constrangidas, até que a
mulher disse algo:
___
Oi, meu nome é Val, Valéria. O Samir está no banho, quer esperar um pouco? Não te
convido para entrar agora porque estou sem roupa.
___
Val, não precisa se preocupar, não quero entrar. Vim apenas trazer isso para
vocês.
___
Ah, obrigada.
Com
os olhos rasos d’água, Ângela foi embora.
Samir
estava saindo do banheiro quando ouviu a porta sendo fechada.
___
Ouvi o barulho da porta. __ disse ele.
___
Era uma moça, disse que não queria entrar e que veio trazer isso para nós.
Samir
nem precisou perguntar como ela era para saber que Ângela estivera ali, o
perfume dela confirmara sua suspeita. Tenso, ele conseguiu que a mulher fosse
embora.
___
Como eu fui burro! Ela veio aqui, queria me ver.
Olhou
as coisas que ela havia levado: uma garrafa de vinho chileno e queijo.
Tentou
falar com ela pelo celular, mas estava desligado e no telefone de casa ninguém
atendia. Angustiado, tentou localizá-la até a noite e nada.
Foi
ao bar onde se viram pela primeira vez, lá encontrou os frequentadores de
sempre, inclusive Renato, menos ela.
Como
que pressentindo que algo estava errado com o amigo, Elias se aproximou.
___
E então?
___
Elias, essa é a abordagem mais estranha que eu já vi.
___
Você não me respondeu.
___
Para falar a verdade não sei nem como começar a responder.
___
Então a confusão está grande na sua cabeça.
___
É exatamente isso.
Samir
contou tudo o que acontecera, a separação de Ângela, os dias solitários, a
mulher que levou para casa e o desfecho da história.
___
Samir, provavelmente ela foi dizer para você que esperaria o seu tempo. Deve ter
pensado com calma e viu que alguns homens como você precisam de mais tempo, sei
lá.
___
Não adianta agora dizer o óbvio: que eu estraguei tudo.
___
Acho que não vai adiantar nada.
Samir
não conhecia nenhum dos amigos de Ângela, ele mesmo fizera que assim fosse,
portanto não tinha como saber do seu paradeiro, já que fora ao apartamento dela
e soube que havia viajado.
Algumas
semanas depois viu sentada a mesa do bar a mulher com quem ela conversara na
primeira vez que a viu. Sem pudor, abordou-a:
___
Oi, meu nome é Samir, eu a vi uma vez lá no bar do Amilton, você estava
conversando com uma moça, uma jornalista... o nome dela é Ângela.
___
Oi, conheço ela.
___
Sabe onde ela está?
___
Sei.
___
Desculpe, qual o seu nome mesmo?
___
Patrícia.
___
Patrícia, eu não sei se você sabe, mas eu e ela tivemos um relacionamento. Acabamos
nos desentendendo, mas eu gostaria muito de falar com ela.
___
Samir, eu sou irmã da Ângela, ela me contou tudo, tudinho.
Embaraçado,
ele ficou sem fala.
___
Então?
___
Você me lembra muito um amigo, mas, vamos lá. Patrícia, eu quero me desculpar
com ela.
Samir
sempre foi um homem de poucas palavras, estava cansado, os dias estavam
praticamente se arrastando, não dormia direito, estava esvaziado.
___
Ela foi para o Chile.
___
Como?!
___
Ela foi pesquisar sobre os movimentos das mães e esposas que perderam seus
filhos e maridos durante a ditadura militar comandada por Pinochet. O editor da
revista onde ela trabalha topou financiar a estada dela durante o tempo que ela
precisar para escrever a matéria. Serão vários artigos.
Atônito,
ele só pensava na distância que agora existia entre eles.
___
Deve ter sido por isso que ela foi aquele dia a minha casa, deve ter sido para
me contar isso. __ respirou ofegante__ Patrícia, você pode me dar o nome do
hotel onde ela está hospedada?
___
Não.
___
Por favor...
___
Acho melhor não. Se quiser, mande um e-mail para ela ou escreva algo que eu
enviarei.
___
Tive uma ideia. Patrícia, pode voltar aqui amanhã às oito?
___
Posso, mas...
___
Então nos vemos amanhã.
No dia
seguinte, Samir apareceu com uma pequena caixa.
___
Olha, já passei nos correios e verifiquei mais ou menos quanto custará enviar
isso para o Chile, aqui está o dinheiro. Envie isso para ela, por favor.
Em poucos
dias, Ângela foi chamada na recepção para receber um embrulho. Dentro havia uma
bússola e um bilhete assinado por Samir, que dizia apenas.
“Não deixe que a tempestade a faça se perder
no mar de emoções tumultuadas de um homem difícil como eu, essa bússola a
levará de volta para o lugar de onde nunca deveria ter saído, a minha vida. Te
amo.“
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