Ela estava pensando nessa
pergunta quando o filho tocou a campainha, abraçou-a forte, mas não disse nada.
Ainda sem resposta, outras pessoas foram chegando, todos a abraçavam e se
mostravam eficientes em organizar tudo.
Pensando se deveria ou não
sair da sala, Lúcia ouviu o telefone tocar, atenderam e disseram-lhe que era a
filha que morava na Europa. Ela o pegou no mesmo instante em que a resposta lhe
veio a mente.
___ Como a senhora está?
___ Estou bem.
___ Mãe, e agora?
Nem ela sabia como seria o
agora.
___ Não sei... __
desabafou
___ Vou pegar o primeiro
avião.
___ Não, filha, não faça
isso.
A conversa continuou por
alguns minutos, cheia de perguntas não elaboradas e sequer respondidas.
Desligou.
Resolveu ir para o quarto,
iria deitar, fechar os olhos, mesmo sabendo que seria impossível dormir.
Bateram suavemente, era uma sobrinha mais que querida, era como uma filha.
___ Quer conversar?
___ Não, meu anjo.
Obrigada.
“Anjos, eles vêm e vão.”
___ Mãe, está na hora,
temos que ir. __ disse o filho mais velho, Fábio.
“Hora, ela passa a nossa
revelia.”
Olhando para ele, ali,
imóvel, sentiu o corpo fraquejar, mas Leonardo, o caçula, não permitiu que
esmorecesse.
___ Mãe, estou aqui. __
sussurrou ele no ouvido dela.
“Obrigada.“ Respondeu ela
com os olhos.
Pouco falou durante o
velório... não havia o que dizer. Recebeu os pêsames ainda sem acreditar em
tudo aquilo.
___ Quando foi mesmo? __
perguntou ela em voz baixíssima para si mesma __ Foi anteontem, foi anteontem
que eu pensei muito forte nele e disse ao meu neto que deveríamos ir visita-lo,
mas acabei não indo.
Não havia nenhuma
testemunha por perto que pudesse ouvir tal desabafo.
Passado o sepultamento disse
que estava bem, que não se preocupassem, mas a família, amorosa, não a deixou
sozinha, todos passaram a noite em seu apartamento.
Os primeiros meses foram
dificílimos. Embora não vivessem mais sobre o mesmo teto, ela sentia falta dele,
sentia falta de ouvir a voz dele dizendo: “Lúcia, fica calma. Eu estou aqui. Eu
vou resolver.”
___ Quando foi mesmo que
eu comecei a chamá-lo de anjo? __ se perguntou ela __ Foi quando estive
internada no hospital... ele fugiu do quartel, pulou a janela do meu quarto só
para me ver, dizer que me amava, que sempre estaria ao meu lado. Desde então,
sempre o chamei de meu anjo.
Ela falava isso para o
neto, que a olhava com olhos de menino crescido, mais velho do que seus doze
anos.
Mas um menino não pode
ouvir tudo o que o coração de uma viúva guarda e ela sabia disso.
Ah, eram tantas as
histórias, tantas lembranças...
O dia parecia como outro
qualquer, Lúcia havia ido trabalhar e depois seguira para a escola noturna.
Quando saíra, junto com a irmã, passaram por um belo rapaz. De porte atlético e
bem comunicativo, ele as abordou. Tímida, ela mal falou durante o período em
que os três caminharam juntos, toda a conversa ficou por conta da irmã, mais
desenvolta que ela.
Chegando a casa, as moças
contaram à madrasta sobre o novo amigo. Ao que tudo indicava, Ana havia
arrumado um paquera.
No dia seguinte, ele estava
na porta da escola. Ela ficou paralisada, foi tomada por uma enorme timidez.
___ Oi.
___ Oi.
___ A Ana não veio hoje.
___ Ela está bem?
___ Sim. Saiu tarde do
trabalho, estava cansada.
___ Que bom que não houve
nada demais com ela. Mas... na verdade, eu vim ver você.
Ela não respondeu.
“Essa timidez me mata!”
“Já são quase onze horas e
eu ainda não preparei o almoço para o Matheus ir à escola. Estou aqui parada
lembrando coisas que aconteceram há quase quatro décadas. Só eu mesma!”
Entre idas e vindas ao
passado, Lúcia foi vivendo sua viuvez.
O tempo fez com que se
tornasse uma boa ouvinte, além de uma excelente conselheira amorosa para a
geração mais nova. Achava que sofriam demais, que choravam demais, que se
entregavam demais para os vícios. Pensava constantemente que não sabiam amar.
“Amar, fazer amor...
hum... é tão bom.” __ lembrou sua primeira vez.
___ Vamos não vai
acontecer nada que você não queira. É só para não ficarmos nos expondo na rua.
Quando chegaram ao quarto
de hotel, ele tirou a camisa, acendeu um cigarro, sentou bem na beirada da cama
e perguntou se ela podia massageá-lo.
Ao começar a tarefa de que
fora incumbida, ela não resistiu, beijou toda a larga extensão daqueles ombros
e mordiscou-o na nuca, enquanto tocava o seu peito nu. Ele não aguentou, em
fração de segundos estava sobre ela desabotoando sua blusa de cambraia branca.
Embora seu corpo estivesse
em chamas, o amado apenas tocou timidamente seus seios quando lhe tirou o soutien e, em seguida, a saia. Antes que
a última barreira fosse puxada para baixo, ela foi suavemente incitada a sair
da cama. Olhou-o de frente. Sabia o que ele queria: ele a despira, agora era
chegada a vez de ela fazer o mesmo com ele.
Másculo, estava ereto,
pulsante.
Lúcia sempre fora uma
mulher de atitude, quando tomava uma decisão, não costumava se arrepender,
estava ali por vontade própria, amava o homem que estava a sua frente, iria até
o fim.
Zé, José...
Com carinho, permitiu que
ela se acostumasse ao peso do corpo dele sobre o dela, beijou toda a extensão
do rosto, chegando aos olhos, passando pela orelha.
Jamais haviam ido tão
longe nas carícias... o corpo frágil estremeceu, relaxou.
A dor que sentiu foi substituída pelo prazer e
abafada pelo som que vinha dos lábios dele, palavras a princípio
ininteligíveis, mas que foram repetidas, várias vezes:
___ Você é minha! Eu sou
seu!
O fato estava consumado.
Descendente de italianos, ele
sabia o quanto o sangue de um pai pode ferver ao tomar conhecimento de que sua
filha não é mais virgem. Ainda mais um pai rigoroso como o dela.
Cheio de coragem, pediu ao
futuro sogro a mão de Lúcia em casamento. Foi um dia memorável!
___ Vó. __ disse Matheus
__ Está tudo bem?
Ela
o olhou sentindo os olhos queimarem.
___
Está sim, meu amor. Não se preocupe.
Mas
não havia um pingo sequer de verdade no que dizia, e ela sabia disso. Mesmo
enquanto se ocupava de alguma coisa, sentia o calor das lágrimas em sua face.
Ela sabia que a dor estava chegando, mas não sabia como neutralizar esse sentimento.
Casara
grávida, mas o pai jamais soube disso, na época, isso seria um escândalo.
“Hoje
as coisas são tão diferentes. Ainda que tenham vários métodos contraceptivos,
as moças engravidam e acham muito normal criarem seus filhos sozinhas, sem o pai
por perto.”
O
espaço onde foram morar era bem pequeno, mas ela o fizera parecer um verdadeiro
lar. Dona de um senso estético ímpar, acomodou as expectativas de uma jovem
esposa e futura mãe, com o romance da lua de mel. Entre cortinas e flores, eles
viveram ali o primeiro ano de casados.
___
Ser feliz nunca foi um projeto de vida para nós, não víamos a felicidade como
algo a ser alcançado. Eu e o seu tio __ disse para Mariana __ simplesmente
éramos felizes.
___
Tia, a senhora fala coisas tão bonitas.
___
Obrigada, mas...
___
Mas...?
___
Mas a felicidade e a dor caminham muito próximas uma da outra. Eu paguei um
preço enorme pela felicidade que tive.
Nem
tudo fora fácil para aquela mulher, muitas foram as brigas, muitas foram as
noites que dormiram sem se falar por conta dos excessos dele. Tratava-se, na
verdade, de um homem boêmio, gostava de ficar com os amigos até tarde, achava
isso normal, e, para piorar, ainda tinha o fato de ser extremamente possessivo.
Tinha muito ciúme dela, não gostava que a tocassem, que chegassem perto demais.
___ Quando foi que o tio
resolveu morar na casa que ele herdou da mãe dele?
___ Quando foi? Sabe, há
um tempo que eu venho pensando nessa pergunta.
Mariana, ainda que tenha
achado a fala da tia meio deslocada, não comentou o fato, permaneceu em
silêncio.
___ Não foi ele que
resolveu, fomos nós. __ respondeu Lúcia __ Acho que ambos nos cansamos dos
desentendimentos, ficamos só com a parte do amor, o amor propriamente dito. Os
filhos estavam criados, casados... Como você sabe, nos víamos com frequência,
cultivávamos o jardim daquela casa juntos... ele tinha uma mão tão boa para
plantar... Adorávamos conversar, conversávamos até demais... parecia... parecia
que nada havia mudado, eu tinha a impressão de tínhamos sido transportados para
o início da nossa vida de casados.
___ O jantar vai ficar
pronto daqui a pouco.
___ Eu não estou com muita
fome, na verdade eu quero outra coisa da minha mulherzinha linda.
___ Olha, __ foi falando,
rindo __ estou grávida.
___ E eu não sei. Mas
fique tranquila, não vou machucar nenhuma das duas. Só quero um pouco de você
em mim.
Lúcia apagou o fogo e foi
para o quarto. Não via aquilo como símbolo de submissão, como mulheres diriam,
ela também gostava desse ato de liberdade, parar tudo e se amar.
Unir seu corpo ao dele
era...
___ Tia... tia...
___ Oi, Mariana, desculpe...,
eu estava meio longe. __ riu.
___ Hum, esses olhos
estavam brilhando... __ sorriu, doce.
___ O amor amadurece,
junto com os que amam.
___ Hoje a senhora está
inspirada. Deveria escrever isso.
___ Boba, estou falando
sério. Quando eu ia para lá, colocávamos as cadeiras do lado de fora e nos
sentávamos ali, ríamos de ver as velhinhas do outro lado da rua tricotando
sobre a vida dos vizinhos. Era tão bom...
___ Ele te amava tia.
___ Eu sei, eu também o
amo.
Mariana conhecia muito bem
sua tia e sabia que ela não havia trocado os tempos verbais.
___ Tia... __ ela sentiu a
garganta ressecar, o assunto era espinhoso __ Ele se foi...
___ Eu sei... eu sei...
mas é tão difícil acreditar, eu sinto a presença dele em vários momentos do meu
dia.
___ Tia, nós não nos
desfazemos do nosso passado, carregamos nossa história para todo o sempre, mas
me preocupa a maneira como isso pode estar sendo visto pela senhora.
___ Eu continuo a mesma.
__ desconversou.
“O mundo não foi feito em
um dia, ela não vai mudar de uma hora para outra.” Pensou Mariana.
___ Oi, Lúcia, tudo bem?
__ disse uma voz masculina do outro lado da linha.
___ Oi. Quem está falando?
___ Meu nome é Marcos, eu
conhecia o seu falecido marido há uns anos, ele inclusive nos apresentou.
___ Desculpe, Marcos, mas
realmente eu não estou lembrando.
Ele explicou mais a
situação, disse ainda que estava viajando na época em que o amigo falecera, por
isso não entrara em contato antes.
A conversa foi
agradabilíssima e Marcos pediu permissão para continuar ligando. Elegante, ele
só o fazia uma vez por semana, pontualmente às sete da manhã, só para dar um
bom dia, e começar o dia com a voz dela em seus ouvidos.
Passaram a se encontrar.
Passeavam, conversavam...
Os mais íntimos perceberam
algumas mudanças, mas não comentaram nada. Fosse o que fosse, aparentemente,
estava fazendo bem a ela.
Com olhos acostumados a
ver mais do que estava posto, ela sabia que a expectativa era companheira da
frustração.
Deixou apenas que o calor
das mãos de Marcos aquecesse as suas, que as conversas ficassem mais a cabo
dele. Reservou-se o direito de ser um barco a deriva, optou por esperar o vento
balançar suas velas e leva-la a algum lugar. Aquela sensação de bem estar iria
aumentar ou arrefecer? Perguntou-se.
Infelizmente a dor e a
saudade não a deixaram, soube que ainda não era o momento. Decidiu se afastar e
comunicou a ele sua decisão.
___ Lúcia, eu te entendo,
mas até certo ponto. Você é uma mulher maravilhosa, ainda tem um tempo bom pela
frente, precisa permitir que te conheçam melhor.
Quase fraquejou, quase
permitiu que a dúvida entrasse em seu espírito...
Abraçou-o. Coração com
coração... pele com pele...
Sentiu a respiração dele
em seu pescoço, o cheiro do perfume, sentiu mais do que poderia aguentar... Os
braços que a envolveram eram sólidos e cheios de promessas futuras, mas isso
não fora suficiente para varrer a tristeza de seu coração.
Não se tratava de um
simples “mise-en-scène”... ele deveria ser o homem ideal, mas para outra
mulher. Não havia vencedores ou perdedores, somente duas almas que se
encontraram para descobrirem que não eram gêmeas e seguiriam seus caminhos.
Ele ainda a procurou, por
uns tempos, mas apenas perguntava como ela estava.
“Como o tempo passa
rápido, faz mais de um mês que ele não me liga. Vai ver seguiu a vida, no que
ele faz muito bem.”
___ Oi, mãe.
___ Oi filho.
___ Não poderia deixar de
vir aqui, justo num dia tão especial como hoje.
Leonardo lembrava um pouco
o pai, tinha um coração amoroso, sensível.
___ Um ano.
___ É... estamos há um ano
sem ele.
Curiosamente
ela não sentiu vontade de chorar, nem aquela dor no peito que a afogueava.
Não
sabia ao certo que rumo sua vida estava tomando, mas não tentaria achar uma
resposta.
Um pensamento surgiu em
sua mente:
“Quando foi a última vez
que me senti assim? Não importa, uma nova vida não tem data certa para
começar.”
Ainda em profunda
reflexão, Lúcia concluiu que quando nos perguntamos quando foi, estamos olhando
para o passado, ou ainda, quando nos perguntamos quando será, estamos olhando
para o futuro e enquanto nos fazemos tais perguntas, ignoramos o presente.
“É, o melhor é não
perguntar, e, sim, viver da maneira que pudermos.” Intuiu.
FIM
Excelente. Gostei muito do ritmo deste conto. Digno de virar um curta hein :)
ResponderExcluirExcelente. Gostei muito do ritmo deste conto. Digno de virar um curta hein :)
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